sábado, 17 de março de 2012

'É presente de grego'



      O dicionário não inventa significados, não os "depura", não esconde o jogo, não "doura a pílula"
      O CARO leitor decerto tomou ciência da polêmica sobre o que se encontra no grande dicionário "Houaiss" no verbete "cigano". Um membro do Ministério Público entende que o "Houaiss" afronta a lei ("o direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas como infração penal").
      O "Houaiss" e outros dicionários registram (sob a rubrica "pejorativo") o uso de "cigano" como "que ou aquele que trapaceia", "velhaco, burlador", "que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro", "agiota", "indivíduo esperto, enganador, especialmente nos negócios", "que ou quem age com astúcia para enganar ou burlar alguém" etc.
     Transcrevi essas definições de alguns dicionários (o próprio "Houaiss", o "Aulete" eletrônico e até um português, o "Universal"). Como se vê, o membro do Ministério Público "esqueceu" os outros dicionários ou vai processar cada um deles separadamente. Prepare-se, editor do "Universal"! Algum tribunal internacional será convidado a tratar do tema...
    O fato é que há um grande equívoco em toda essa questão. Não sei se o ovo é anterior à galinha, mas, em se tratando da relação língua/dicionários, a língua e os usos linguísticos vêm antes dos dicionários, que nada mais são que "cartórios" da língua. Ao dicionarista não cabe julgar antes de registrar, não cabe o papel de censor.
   O que o dicionarista faz é definir o "corpus" de sua pesquisa e, a partir daí, registrar o que atinge determinado número de incidências. E fim.
    Um dicionário de caráter amplo, como o "Houaiss" ou o "Aurélio", apoia-se num "corpus" vasto (linguagem formal, informal, chula, familiar, técnica, antiga, literária etc.) e num amplo arco temporal. O "Houaiss", por exemplo, vai longe no tempo.
    Moral da história: se é uso, o dicionário registra e, portanto, cumpre o seu papel. O dicionário não inventa significados, não os "depura", não esconde o jogo, não "doura a pílula", não é esquizofrênico, não é hipócrita.
    Bem, a esta altura, cabe-me sugerir ao Ministério Público que estenda a ação judicial aos outros dicionaristas e a alguns dos nossos artistas. Sugiro dois nomes: o monumental Chico Buarque e o grande Humberto Teixeira. Bem, Humberto Teixeira já faleceu (em 1979), mas processar um defunto não seria menos bizarro do que é processar o "Houaiss" pelo verbete "cigano". Que fez Teixeira, que, além de letrista, era advogado? Empregou "judiação" na letra da memorável "Asa Branca". Sim, todo brasileiro manifesta preconceito explícito contra os judeus quando emprega termos como "judiar"e "judiação".
   E Chico Buarque? Em 1969, quando nasceu uma de suas filhas, o Mestre, torcedor do Fluminense, recebeu do querido e saudoso Ciro Monteiro ("Gostar de Ciro Monteiro é prova de caráter", dizia Vinicius) uma camisa do Flamengo. Mais que depressa Chico transformou o fato na memorável canção "Ilmo Sr. Ciro Monteiro" ou "Receita para Virar Casaca de Neném". Diz a letra: "Minha petiz / Agradece a camisa / Que lhe deste à guisa / De gentil presente / Mas caro nego / Um pano rubro-negro / É presente de grego / Não de um bom irmão". Eta Chico preconceituoso! Nego? Presente de grego? Processo nele!
    Fico com os versos seguintes da memorável mensagem de Chico a Ciro: "Nós separados / Nas arquibancadas / Temos sido tão chegados / Na desolação". Que maravilha! E motivos não faltam para a desolação. Um deles é constatar que a bobajada do politicamente correto já deu o que tinha de dar. Xô! É isso.

(Fonte: Pasquale Cipro Neto - Folha de S. Paulo - 16/3/12)

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