quinta-feira, 22 de março de 2012

Redação nota 10 na UNICAMP 2000 em referência à ÁGUA (em 22 de março, quando celebramos seu dia internacional)

Água – elemento fundamental 

    Tamandaré, o equivalente indígena do Noé bíblico, poupou sua civilização da extinção salvando-a da tempestade que alagou o território em que vivia. A mitificação da água, elemento recorrente na mitologia indígena, decorre justamente da suma importância que essa substância pura tem para as tribos brasileiras. Quando, há quase quinhentos anos, os portugueses em terra tupiniquim aportaram, um dos aspectos que mais os impressionaram foi a limpeza característica de todos os índios: homens e mulheres tão limpos que não se intimidavam em mostrar suas “vergonhas”. Provavelmente, essa cena remeteu os lusitanos à sua própria “civilização moderna”, em que banhos diários eram simplesmente inimagináveis. 
   Na idade contemporânea, os hábitos concernentes à higiene pessoal pouco haviam evoluído. Apesar de já serem conhecidos os mecanismos de transpiração e a teoria infeccionista, que mostraram a necessidade de práticas de higiene constantes, muitos mitos que ligavam a água a aspectos fisiológicos, como a esterilidade feminina, ainda eram levados a sério, o que não permitiu que a água fosse utilizada em “larga escala”, como bem atesta o escritor Alain Corbin, estudioso da vida privada a partir da Revolução Francesa. 
   Muito antes que a civilização contemporânea fizesse asserções sobre a questão da água, ela já se configurava em elemento indispensável à formação da própria civilização urbana. A água foi condição “sine qua non” para o surgimento e estabelecimento de grupos humanos cujo legado é, até hoje, alvo de estudos: as civilizações mesopotâmica, egípcia e chinesa prosperaram devido ao uso inteligente de seus recursos hídricos. Sabendo irrigar e tornar produtivo o solo, foram capazes de se firmar como as primeiras grandes civilizações humanas.   
      Atualmente, no limiar do terceiro milênio, a água vem sendo o principal objeto de reflexão. Tudo porque o homem de hoje, que já incorporou as noções de limpeza como algo imprescindível para as relações interpessoais, foi capaz de conquistar o espaço, mas não soube – ou não foi conveniente que soubesse – como manter íntegro o elemento “matriz de todas as coisas”, segundo o filósofo Nietzsche. O desenvolvimento industrial, que transformou radicalmente a sociedade, não considerou a questão da água como prioritária para que, a longo prazo, pudesse usufruir de todas as benesses tecnológicas. As indústrias passaram a despejar seus dejetos tóxicos em rios. A urbanização não foi acompanhada pela instalação de eficientes redes de esgoto. Nem os produtos da evolução tecnológica deixam por menos: constantemente se vêem nos noticiários catastróficos acidentes ambientais causados pelo derramamento de óleo dos petroleiros.
     As conseqüências de anos de descaso com a questão da água estão mais próximas do que se imagina, levando a humanidade a uma visão pessimista e obscura do futuro: derretimento da calota polar, causado pela emissão excessiva de gases que destroem a camada de ozônio, deixando o caminho livre para os raios infravermelhos; envenenamento de seres vivos com substâncias tóxicas nos mananciais, contaminados por dejetos tóxicos; chuva ácida, formada a partir de gases originários da queima de combustíveis fósseis; ou ainda, a mais cruel e, ao mesmo tempo, simples das conseqüências: a sede causada pelo fim da água potável. 
    A civilização humana evoluiu de forma descompassada e paradoxal: relegou, por muito tempo, a um segundo plano a substância responsável pela sua existência. O homem atual, obeso de tecnologia e informação, mas desnutrido de medidas que permitissem a manutenção de suas obras tenta, agora, com muita dificuldade e gastos altíssimos, reparar os erros que cometeu na relação ingrata que manteve com a água: obteve muito dela sem que a recíproca ocorresse.
   O relacionamento ser humano–água deve voltar a ser permeado pelo sensacionismo típico de Alberto Caeiro, faceta bucólica do escritor português modernista Fernando Pessoa, o qual, já neste século, percebeu e registrou a água não como mero fator natural necessário para a sobrevivência, mas também como indispensável nas relações emotivas entre os homens e destes para com a natureza.
  Os índios brasileiros sabem – ou, infelizmente, sabiam – o valor incalculável da água. Cabe-nos agora voltar à mentalidade da civilização que foi uma das constituintes do povo brasileiro, tratando-a como parceira para o desenvolvimento. E isso só será feito com a união da consciência social-ecológica e do crescimento tecnológico para despoluir e valorizar a água do planeta quase cinza, mas que ainda tem resquícios azuis.

Fonte: ANA LUIZA GIBERTONI CRUZ - Aprovada na Medicina da UNICAMP, em 2000, quando o tema de redação foi "AGUA" (reprodução fiel do texto da candidata)

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