Água – elemento fundamental
Tamandaré, o equivalente indígena do Noé bíblico, poupou
sua civilização da extinção salvando-a da tempestade que alagou o território em
que vivia. A mitificação da água, elemento recorrente na mitologia indígena,
decorre justamente da suma importância que essa substância pura tem para as
tribos brasileiras. Quando, há quase quinhentos anos, os portugueses em terra
tupiniquim aportaram, um dos aspectos que mais os impressionaram foi a limpeza
característica de todos os índios: homens e mulheres tão limpos que não se
intimidavam em mostrar suas “vergonhas”. Provavelmente, essa cena remeteu os
lusitanos à sua própria “civilização moderna”, em que banhos diários eram
simplesmente inimagináveis.
Na idade contemporânea, os hábitos concernentes à higiene
pessoal pouco haviam evoluído. Apesar de já serem conhecidos os mecanismos de
transpiração e a teoria infeccionista, que mostraram a necessidade de práticas
de higiene constantes, muitos mitos que ligavam a água a aspectos fisiológicos,
como a esterilidade feminina, ainda eram levados a sério, o que não permitiu que
a água fosse utilizada em “larga escala”, como bem atesta o escritor Alain
Corbin, estudioso da vida privada a partir da Revolução Francesa.
Muito antes que a civilização contemporânea fizesse
asserções sobre a questão da água, ela já se configurava em elemento
indispensável à formação da própria civilização urbana. A água foi condição
“sine qua non” para o surgimento e estabelecimento de grupos humanos cujo legado
é, até hoje, alvo de estudos: as civilizações mesopotâmica, egípcia e chinesa
prosperaram devido ao uso inteligente de seus recursos hídricos. Sabendo irrigar
e tornar produtivo o solo, foram capazes de se firmar como as primeiras grandes
civilizações humanas.
Atualmente, no limiar do terceiro milênio, a água vem
sendo o principal objeto de reflexão. Tudo porque o homem de hoje, que já
incorporou as noções de limpeza como algo imprescindível para as relações
interpessoais, foi capaz de conquistar o espaço, mas não soube – ou não foi
conveniente que soubesse – como manter íntegro o elemento “matriz de todas as
coisas”, segundo o filósofo Nietzsche. O desenvolvimento industrial, que
transformou radicalmente a sociedade, não considerou a questão da água como
prioritária para que, a longo prazo, pudesse usufruir de todas as benesses
tecnológicas. As indústrias passaram a despejar seus dejetos tóxicos em rios. A
urbanização não foi acompanhada pela instalação de eficientes redes de esgoto.
Nem os produtos da evolução tecnológica deixam por menos: constantemente se vêem
nos noticiários catastróficos acidentes ambientais causados pelo derramamento de
óleo dos petroleiros.
As conseqüências de anos de descaso com a questão da água
estão mais próximas do que se imagina, levando a humanidade a uma visão
pessimista e obscura do futuro: derretimento da calota polar, causado pela
emissão excessiva de gases que destroem a camada de ozônio, deixando o caminho
livre para os raios infravermelhos; envenenamento de seres vivos com substâncias
tóxicas nos mananciais, contaminados por dejetos tóxicos; chuva ácida, formada a
partir de gases originários da queima de combustíveis fósseis; ou ainda, a mais
cruel e, ao mesmo tempo, simples das conseqüências: a sede causada pelo fim da
água potável.
A civilização humana evoluiu de forma descompassada e
paradoxal: relegou, por muito tempo, a um segundo plano a substância responsável
pela sua existência. O homem atual, obeso de tecnologia e informação, mas
desnutrido de medidas que permitissem a manutenção de suas obras tenta, agora,
com muita dificuldade e gastos altíssimos, reparar os erros que cometeu na
relação ingrata que manteve com a água: obteve muito dela sem que a recíproca
ocorresse.
O relacionamento ser humano–água deve voltar a ser
permeado pelo sensacionismo típico de Alberto Caeiro, faceta bucólica do
escritor português modernista Fernando Pessoa, o qual, já neste século, percebeu
e registrou a água não como mero fator natural necessário para a sobrevivência,
mas também como indispensável nas relações emotivas entre os homens e destes
para com a natureza.
Os índios brasileiros sabem – ou, infelizmente, sabiam – o
valor incalculável da água. Cabe-nos agora voltar à mentalidade da civilização
que foi uma das constituintes do povo brasileiro, tratando-a como parceira para
o desenvolvimento. E isso só será feito com a união da consciência
social-ecológica e do crescimento tecnológico para despoluir e valorizar a água
do planeta quase cinza, mas que ainda tem resquícios azuis.
Fonte: ANA LUIZA GIBERTONI CRUZ - Aprovada na Medicina da UNICAMP, em 2000, quando o tema de redação foi "AGUA" (reprodução fiel do texto da candidata)
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