Qualquer um, mesmo sem nunca ter passado pela escola, sabe que não pode falar sempre do mesmo jeito com todas as pessoas, pois, até mesmo entre os familiares, cada relação está marcada por um nível diferente de formalidade. A linguagem que usamos às vezes é mais informal, às vezes é mais séria, impessoal. Nessas situações menos pessoais, a norma culta é a mais adequada para garantir um contato respeitoso e mais claro entre os indivíduos. Por isso, quando o falante consegue variar a linguagem, adequando o nível de formalidade a suas intenções, à situação e à pessoa com quem fala, dizemos que ele possui boa competência linguística. O conhecimento das variedades linguísticas amplia nossas possibilidades de comunicação, mas é a norma culta que garante a manutenção de uma unidade linguística ao país. Com base nos textos da coletânea a seguir, elabore uma dissertação argumentativa sobre o tema: considerando que a norma culta é variante mais valorizada socialmente, qual deve ser a posição da escola em relação às outras variantes linguísticas?
Qualidades e valores
Ninguém de bom-senso discorda de que a expressão popular tem validade como forma de comunicação. Só que é preciso que se reconheça que a língua culta reúne infinitamente mais qualidades e valores. Ela é a única que consegue produzir e traduzir os pensamentos que circulam no mundo da filosofia, da literatura, das artes e das ciências. A linguagem popular a que alguns colegas meus se referem, por sua vez, não apresenta vocabulário nem tampouco estatura gramatical que permitam desenvolver idéias de maior complexidade - tão caras a uma sociedade que almeja evoluir. Por isso, é óbvio que não cabe às escolas ensiná-la.
[Evanildo Bechara, gramático e filólogo, em entrevista a revista Veja, 29 de maio de 2011]
“Menas: o certo do errado e o errado do certo”
A ideia é provocadora e reflete um debate bem atual. Em cartaz desde 16 de março no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, a exposição "Menas: o certo do errado, o errado do certo", tem a proposta manifesta de homenagear a variante popular do idioma no Brasil.
A exposição, que fica no museu até 27 de junho, começa na estação de metrô Luz, onde cerca de trinta banners trazem frases com os chamados tropeços comuns no português falado no Brasil, de "A nível de língua, ninguém sabe tudo" a "Ele vai vim para a festa". O objetivo é fazer o visitante refletir sobre a normatização na língua, antes mesmo de chegar às dependências do museu.
Lá dentro, sete instalações convidam o visitante a lidar sem preconceito com as formas em uso no português brasileiro. O próprio título da mostra soa como provocação, brincando com a variante do advérbio "menos", por princípio invariável. [Revista Língua]
Pertinente, adequado e necessário
... nenhum linguista sério, brasileiro ou estrangeiro, jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades linguísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer ali, fechados em sua comunidade, em sua cultura e em sua língua. O que esses profissionais vêm tentando fazer as pessoas entenderem é que defender uma coisa não significa automaticamente combater a outra. Defender o respeito à variedade linguística dos estudantes não significa que não cabe à escola introduzi-los ao mundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio, mas é preciso repetir isso a todo momento.
Não é preciso ensinar nenhum brasileiro a dizer “isso é para mim tomar?”, porque essa regra gramatical (sim, caros leigos, é uma regra gramatical) já faz parte da língua materna de 99% dos nossos compatriotas. O que é preciso ensinar é a forma “isso é para eu tomar?”, porque ela não faz parte da gramática da maioria dos falantes de português brasileiro, mas por ainda servir de arame farpado entre os que falam “certo” e os que falam “errado”, é dever da escola apresentar essa outra regra aos alunos, de modo que eles - se julgarem pertinente, adequado e necessário - possam vir a usá-la.
[Marcos Bagno, escritor e lingüista, na revista Carta Capital]
Por uma vida melhor
Vem causando imensa polêmica o conteúdo do livro Por uma vida melhor, distribuído pelo Ministério da Educação a
500 000 alunos de escolas públicas. A controvérsia decorre do pressuposto de que o referido livro parece nivelar as variantes linguísticas, alertando o estudante contra o “preconceito linguístico” que ele pode vir a sofrer caso se expresse de maneira informal.
Veja abaixo um trecho de Por uma vida melhor:
‘Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado’. Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os
livro?’.” Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito
linguístico.” (Veja, 25/5/2011)
No livro [Por uma vida melhor], Heloisa Ramos, uma das autoras, diz que quem "fala errado" pode ser vítima de
"preconceito linguístico". O lado perverso desse desvario é que, com isso, se justifica o não fornecimento, às pessoas que mais precisam deles, dos códigos que lhes permitiriam alcançar uma vida melhor.
(Veja, Carta ao leitor, 25/5/2011 -adaptado)
Querer que a escola ignore que existe uma língua-padrão, que todos temos o direito de conhecer, é nivelar por baixo, como se o menos informado fosse incapaz. É mais uma vez discriminar quem não pôde desenvolver plenamente suas
capacidades. E, esta sim, é uma postura preconceituosa: os menos privilegiados que fiquem como estão. Coroada a ignorância, as futuras gerações, livres da escola e do dever de crescer, escreverão e falarão sempre achando naturais e boas coisas como "os home espera", "nós achemo", "as mulher precisa". (Ou "percisa" seria melhor?).
(Lya Luft, “Chancela para a ignorância”, Veja, 25/5/2011 -adaptado)
Você deve ter visto que o MEC deu aval a um livro que se diz didático no qual se ensina que falar "os livro" pode. Não pode, não, está errado, é ignorância, pura ignorância, má formação educacional, preguiça do educador em corrigir erros. Afinal, é muito mais difícil ensinar o certo do que aceitar o errado com o qual o aluno chega à escola.
(Clóvis Rossi, FSP, 23/5/2011)
Estuda-se pouco e ensina-se mal
Há muito que a norma culta — o padrão estabelecido por gramáticos e lexicógrafos, que nem sempre, aliás, se põem de acordo — deixou de ter valor absoluto. O substrato real de toda língua está na fala popular, que evolui ao longo do tempo e impõe, cedo ou tarde, mudanças na norma que se convencionou ser a correta.
Em contexto oral, coloquial ou literário, admitem-se variações definidas como erradas pelo padrão gramatical. Esse padrão configura apenas um conjunto de convenções que assegura lógica ao funcionamento do idioma, ainda que suas regras sejam eivadas de exceções e anomalias.
Daí não decorre, porém, que a norma culta seja um parâmetro inútil ou preconceituoso. Trata-se de um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação.
Além disso, o aprendizado da norma culta faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço. De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação "popular" ou "democrática", muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações.
Em vez da revolução pedagógica que apregoam, o resultado tem sido a implantação despercebida da lei do menor esforço nas escolas. Estuda-se pouco e ensina-se mal. Isso — e não suscetibilidades gramaticais — é o que deveria preocupar. (Editorial FSP, 19/5/2011)
Discutir preconceito linguístico é fundamental para que alunos que vêm de classes menos favorecidas não se sintam reprimidos. A atitude normal da escola sempre foi zombar da fala dos alunos. Esse debate é fundamental para criar um ambiente mais acolhedor. (Marcos Bagno, autor do livro Preconceito Lingüístico)
Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua
seria mais "errada" do que uma que ferisse as caprichosas regras de colocação pronominal, por exemplo.
(http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/916634-uma-defesa-do-erro-de-portugues.shtml)
É indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação linguística existente no nosso País e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes os pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e violência simbólica com base na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso destacar a importância de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas quanto para participar da luta contra o preconceito linguístico. (Carlos Alberto Faraco, linguista)